Professor usa hit 'Tudo Nosso' em sala para gerar reflexão entre alunos


"Tudo nosso e nada deles". O hit que concorreu ao título de melhor música no Carnaval 2015, e arrastou uma multidão na pipoca do cantor Igor Kannário em Salvador, foi tema de atividade em sala de aula no Colégio Estadual Júlio Vírgínio de Santana, na região de Mar Grande, em Vera Cruz, município da região metropolitana da capital baiana.


A avaliação, elaborada com o intuito de promover integração entre alunos e professor no início do ano letivo de 2015, ganhou as redes sociais. Dentre as questões propostas para os estudantes, estava a interpretação de trechos da canção mais famosa do artista conhecido como o "Príncipe do Gueto". 


"Na sua opinião, o que vem a ser: 'Não bata de frente não, você sabe qual é meu plantão. O bonde é pesado, fique ligado. Quando eu passar você vai ver'?", diz uma das questões. A atividade também estimulou os alunos a pensarem nos significados de algumas gírias usadas na composição, como: barril, tá ligado, cole com a gente, chapa quente.


Além da interpretação de vocábulos, a avaliação proposta provocou os estudantes com questões relacionadas ao dia-a-dia das comunidades periféricas. Dentre as perguntas, o professor questionava: "Por que essa música fez tanto sucesso na periferia e nos lugares mais pobres da cidade de Salvador?" e "Por que muitos moradores das periferias chamam Igor Kannário de o “Príncipe dos Guetos? Seria ele um representante dessa parte excluída da sociedade?".


As questões foram elaboradas pelo professor de sociologia Paulo Marconi Nunes. Em entrevista ao G1, ele ressalta que o tema "Carnaval" rende muito nas área de Ciências Humanas. Com o término da festa e início do ano letivo, Marconi considerou oportuna a discussão sobre o hit "Tudo Nosso e Nada Deles", que fazia parte do acervo musical "baixado" nos celulares da maioria dos estudantes. 


Para ele, a canção dialoga fortemente com itens importantes das discussões sociológicas. "Sabemos que a segregação socioespacial é muito forte na cidade de Salvador, sendo esta, também, uma segregação étnico-racial, onde a exclusão social cria modelos arbitrários para uma significativa parcela formada majoritariamente pela população negra", comenta.


Sobre o assunto, ele  afirma que a música estimula a reflexão sobre os preconceitos sofridos pelos moradores das periferias. "[Propaga-se], erroneamente, a ideia de que todos os moradores das favelas ou áreas suburbanas podem estar envolvidos com o tráfico e o consumo de drogas e que estes devem ser criminalizados e responsáveis por todos os males vividos pela sociedade considerada como moderna nos tempos atuais", reflete.


O professor ainda destaca que o assunto aproxima a pedagogia aplicada ao dia-a-dia dos estudantes. "Para entender o submundo da periferia é necessário entender a estrutura social que está por trás disso tudo, pois sabemos que a maioria das pessoas não escolhe por gosto o melhor para suas vidas. Esse mundo de conflitos permanentes faz parte do cenário vivido por boa parte dos nossos alunos", detalha.


Reação


Paulo marconi ressalta que a atividade provocou reações diversas entre os estudantes. "Alguns riram e pensaram que seria uma espécie de pegadinha um professor de Sociologia trazer uma música de Igor Kannário, música esta a mais tocada e cantada por muitos jovens no carnaval de Salvador e considerada por alguns um tanto polêmica, para o universo da sala de aula", destacou.


No desenrolar da avaliação e das dinâmicas em grupo, o professor ressalta que o resultado foi animador. "Foi muito interessante e, ao mesmo tempo, polêmico. Senti nos depoimentos apresentados que muitos estavam realmente trazendo o seu cotidiano para a sala de aula, usando até mesmo uma linguagem bem característica de muitos jovens nas tão famosas redes sociais que fazem parte do cotidiano da maioria. Do ponto de vista pedagógico, foi surpreendente", afirmou.


Paulo Marconi relata que foi surpreendido pela declarações dos alunos. "Os  depoimentos mais marcantes foram com relação à exclusão social, às drogas, à violência urbana, ao processo crescente de favelização da cidade do Salvador e o submundo em que a maioria da população negra vive submetida. Alguns alunos falaram sobre o aumento do fenômeno da violência do contento político atual, sobretudo nas camadas mais periféricas, onde alguns alegaram também  sobre a diminuição dos gastos sociais do poder público e a degradação das condições de vida dos indivíduos das áreas consideradas periféricas, contribuindo dessa forma para uma ampliação massiva dos famosos guetos sociais", elenca.


Formação


Paulo Marconi detalha que que deixou a unidade escolar em março deste ano, mas guarda lembranças profundas do período em que lecionou na unidade. "Infelizmente, fiquei excedente, pois fui o último professor de Geografia a chegar nessa unidade escolar, onde atuava boa parte da minha carga horária na disciplina de Sociologia. Também neste ano o Colégio Estadual Júlio Virgínio teve que transferir algumas turmas do Ensino Fundamental para a responsabilidade da Prefeitura de Vera Cruz, interferindo diretamente na carga horária de vários professores. Saí desse colégio com a sensação de dever cumprido, mas já me encontro em outra unidade escolar sendo motivado já por outros desafios", detalha.


Paulo Marconi, que tem 50 anos, conta que é professor há quase 27 anos, geógrafo de formação pela Universidade Federal da Paraíba (João Pessoa), com complementação na Universidade Federal da Bahia/Salvador, tendo pós-graduações nas áreas de Sociologia, Geografia Física e Educação Ambiental.


Atualmente, ele atua em um projeto estruturado pela Secretaria Educação do Estado para os Centro Noturnos de Educação da Bahia, buscando práticas pedagógicas viáveis para o aluno trabalhador que frequenta a educação noturna. Ele também exerce parte da carga horária no Colégio Estadual Mário Augusto Teixeira de Freitas, ambos em Salvador.

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